Excerto que me fez chorar

"a fome é uma boa razão para roubo, quem rouba por precisão tem cem anos de perdão, bem sei que o ditado não é assim, mas devia ser (...) e então chegou o guarda (...) chamaram-nos nomes, como é que a gente tem aguentado tantas más palavras, e quando o meu pai lhes pediu por amor de Deus que nos deixassem levar a bolota que tínhamos apanahdo do chão, puseram-se a rir e disseram que estava bem, podíamos ficar com a bolota, mas com uma condição, brigarmos um com o outro para eles verem, e então o meu pai respondeu que não ia brigar com o seu próprio filho, e eu com o meu próprio pai, mas eles disseram que sendo assim íamos para o posto (...) para aprendermos a regra de bem viver, íamos brigar (...) o meu pai ficou desesperado, bateu-me, doeu-me tanto, não foi a força da pancada, e eu dei-lhe troco da mesma maneira, e daí a um minuto andávamos a rebolar pelo chão, os guardas riam como uns perdidos (...) quando demos por nós estávamos sozinhos, os guardas tinham-se ido embora (...) e então o meu pai começou a chorar e eu embalei-o como se ele fosse uma criança, jurei que nunca haveria de contar a ninguém, mas hoje não podia ficar calado, não é pelas oito horas e pelos quarenta escudos de salário, é porque é preciso fazer alguma coisa para não nos perdermos, porque uma vida assim não é justa, lutarem dois homens um com o outro (...) não somos homens se desta vez não nos levantarmos do chão (...). Quando esta voz se calou, levantaram-se os homens todos, nem foi preciso dizer mais palavras, cada qual segui o seu caminho, firmes para o primeiro de Maio (...)"
José Saramago, Levantado do Chão

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