2020 revisto num só fôlego

2020 num post é coisa difícil mas vou tentar escrever tudo seguido sem pausas, ao sabor do teclado.

Quando vejo as imagens do mundo parado em março e abril, emociono-me porque me lembro do medo que senti. Não senti receio da doença em si mas das consequências que poderiam brotar da doença: desemprego, vandalismo, criminalidade, violência, enfim, tudo cenários apocalípticos... Acho que o tempo foi acalmando o medo, assim como o facto de estarmos sempre os 4 juntos. Houve momentos aborrecidos, em que já não nos podíamos ver à frente, em que me cansei de ser mãe do Pedro e do Tiago e esposa do pai cá de casa (e vice-versa) mas, no global, os laços familiares ficaram fortalecidos. Tivemos sorte com o momento de confinamento e a idade deles: nem muito pequenos nem demasiados adolescentes. Foi o ponto certo.
O calor suave da primavera levou-nos a desconfinar fora de Lisboa e das paredes do apartamento. Foi um bálsamo e um luxo. Entre a Serra da Lousã e depois a Fonte da Telha, onde estivemos até meados de Setembro, a nossa vida foi-se adaptando ao "novo normal" de uma forma serena e calma. Ainda há pouco comentava com os nossos filhos que devíamos estar gratos pela nossa sorte, pelo desemprego do pai cá de casa ter sido tão rápido e por estarmos juntos e bem. Reviraram os olhos, a pensar que me tinha transformado na D.Clotide e sem perceber que são efetivamente uns privilegiados. Ao chegar a 2021, ainda há medo em mim ao pensar no futuro e na crise que aí vem. Precisaremos de anos para equilibrar as coisas. Mas não vou por aí,  que este post é sobre 2020.
Há duas ou três imagens de 2020 que me marcaram: o senhor com a nossa bandeira a descer a avenida da Liberdade no 25 de Abril, o papa deitado no chão a celebrar a Páscoa num Vaticano deserto e os camiões militares a retirarem corpos dos hospitais na Itália. 
2020 foi o ano em que bebi mais vinho. O álcool ajudou a passar o tempo e tornou-o mais suportável. Houve um dia em que pensei "Há quantos dias é que só bebo vinho?" Não soube responder. Nesse dia, bebi água às refeições para conseguir ter uma resposta. Nos dias em que me lembro da estupefacção da pergunta, bebo água.
Embora 2020 tenha sido um ano em que ficamos muitas vezes fechados, não foi aquele em que li mais. Fiquei-me pelos 37 livros. No início do confinamento, não encontrava vontade nem concentração para a leitura. Havia demasiadas vozes em mim. Dos 37 lidos, tenho um top 3: "Seara do Vento" de Manuel Fonseca, "Terra Americana" de Jeanine Cummins e "Apneia" de Tânia Ganho. Logo de seguida, alargando o meu top 3 a 5, acrescento "A Vida Sonhada das Boas Esposas" do Possidónio Cachapa e "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão " de Martha Batalha. Reli com o Pedro "A História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar". Foi uma partilha intimista e muito emocional, um momento especial que nos uniu mais.
2020 foi o ano em em que corri 747 km. Houve meses em que corri 0 e outros em que ultrapassei a barreira dos 100. Inconstância foi e sempre será o meu nome do meio.
2020 foi o mês em que tatuei mais estrias no corpo. Aumentei muito o peso e perdi-o também em dois ou três meses. Cheguei a ver 69 kg na balança  (Mas depois ela despareceu e deixei de me pesar) e quando disse "basta", vi, numa outra balanca, 59. Estou outra vez numa fase ascendente: 61. Faço jus ao meu nome do meio. Nisso sou consistente.
2020 foi um ano difícil em termos de trabalho. Dar aulas online, das 8 às 16h, foi de uma brutalidade enorme. Saí da caixa, dei o meu melhor e não fiz má figura, creio. Foi também o ano em que estive a um passo de me demitir. Não o fiz por duas razões, uma mais importante que a outra, mas nenhuma tinha a ver com o receio de ficar no desemprego. No balanço do ano anterior, sei que também escrevi que estive quase a despedir-me. O trabalho continua a ser tóxico, ano após ano. O recomeço do ano letivo 2020/2021 foi intenso. Trabalhei muito, preocupei-me ainda mais e sempre senti que havia coisas a falhar. O trabalho deixou-me ansiosa. Houve dias em que tinha de respirar fundo antes de entrar no espaço físico da escola para tentar controlar o aperto no peito. Às vezes, brinco dizendo que quase me tornei expert em isolamento profiláticas, em papéis, esclarecimentos, declarações provisórias, testes covid, etc. Houve momentos em que senti que tive pouco tempo para ser efetivamente professora. 
2020 foi o ano em que a minha avó foi colocada numa casa de repouso. Há dias, muitos, em que penso que ela ainda está no seu sofá na casa dos meus pais. Depois, lembro-me que está morta, estando viva, numa prisão chamada "lar". Que ironia. Os meus filhos foram vê-la uma só vez e pediram -me para nunca mais a ir ver. O Covid obriga-nos a estar demasiado longe dela e separados por um acrílico. Ela não vê por causa das cataratas e não ouve por causa do distanciamento. Está ali e diz apenas "sim, sim", "não sei" ou fica num silêncio ensurdecedor. Fiz a vontade aos meus filhos. Eu vou, ou melhor ia, que agora, já não há "visitas". Quando saía de lá,  sempre em lágrimas,  só desejava que ela adormecesse para sempre daí a nada. Continua a ser o meu desejo e percebo quem não me perceba.
2020 foi o mês em não há nenhuma recordação de janeiro e fevereiro. Parece que sempre vivemos em pandemia, que tivemos apenas uma pausa para irmos de férias para a ilha, para a na nossa bolha a 5 e no meio de risos, leituras, conversas e silêncios, esquecemo-nos mesmo de tudo. 
2020 foi o ano em que chegamos à conclusão que o calendário do Advento já não faz sentido. A magia do Advento,  tal como o conhecíamos,  foi-se. Faz parte de um tempo em que eles eram mais pequenos. Assumimos os 4 que este era o último ano, mas o pai cá de casa ainda disse que para o ano, podíamos só escrever um desejo por dia e guardá-los num pote para relê-los mais tarde. Custa a todos ver os filhos crescerem. 
2020 foi o ano em que o meu Pedro entrou no 2° ciclo,  ainda muito imaturo e abebezado mas já muito (demasiado ) desenvolvido hormonalmente. Ele não consegue perceber aquele corpo coberto de pêlo, o suor constante e as borbulhas que irrompem da sua pele e que o enojam. Continua a viver numa bolha onde poucos querem entrar. O Tiago entrou para o 8°ano e se a professora que há em mim passa a vida a dizer que para dar aulas aos oitavos anos, é preciso paciência e estaleca; ser mãe de um rapaz que frequenta o oitavo é duro. Embora seja um doce, bem- humorado e empático, nisso sai ao pai, não se cala um segundo. Fala, fala, grita ao falar, não se cala, cansa, não ouve, embirra com o irmão e qualquer chamada  de atenção nossa é interrompida por um "mas". Não consegue conter aquela explosão, aquela euforia, aquela "coisa", nem sei, que mora dentro dele.
Deixou-me de chamar sempre mãe. Grande parte das vezes, chama-me por Tella ou Tellita. O pai cá de casa já o chamou à atenção mas eu tive de o desautorizar, pois gosto que ele me trate assim. 
Em 2020, escrevi muitos posts no blog. Continuo a olhar para o meu blog com afeto. Gosto dele e tenho muito prazer em escrever cá. Nem sempre tenho noção da recetividade do que escrevo mas não me importo muito porque, meus caros leitores, não me levem a mal, escrevo muito para mim. Em 2020, reli o blog quase todo. Tive vergonha de algumas coisas escritas, tive saudades da onda de amor que me atingiu quando nasceram, aborreci-me com os relatos das rotinas deles aos 12, 15 e 18 meses, ri-me com alguns episódios e também me emocionei com outros. Não me lembrava de ter escrito tanta coisa e apesar de ter sentido coisas contraditórias,  vi a Tella de 2008 e a Tella de 2020 e bolas, até houve uma evolução! 
Que 2021 seja um ano normal, de reencontros e de abraços.(e de vinho,  claro)



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