Uma das minhas histórias de 2018 - relato

Acho que nunca o mencionei aqui, mas a minha família materna é de Riba de Ave / Famalicão.
Na minha infância, era muito próxima dela. Aos 12 anos, os meus avós deixaram a França e depois disso só passava uns dias com eles nas férias até aos meus 15 anos. Depois, a distância, a adolescência e o facto de não ter amigos por lá, afastou-me cada vez mais. Era mais team Castanheira de Pêra. Assim, fui deixando o Norte.

Em França, dormia todos os fins de semana na casa dos meus avós. Criaram-me a mim e ao meu irmão. A minha avó contava-me histórias sobre a família que estava lá longe, em Portugal. Contava-me coisas que eu nem entendia na altura, coisas como "o tio Zé fez mal à tia Gina e tiveram de casar" ou " um homem aproveitou-se da Zeza e ninguém quis ficar com ela".  Falou-me da experiencia de aprender a ler já adulta, da morte dos seus 4 filhos, uns já crescidos com 8 ou 9 anos e dos gêmeos que morreram com poucos dias de vida. Falava-me do pai dela, que era da guarda republicana e da avó dela, professora da primária.  Adorava ouvi-la contar aquilo tudo. Pedia-lhe mais, sempre mais. Aos fins de semana, íamos as duas dar grandes passeios, a apanhar lenha e flores. A Dor, a cadela rafeira branca e castanha, acompanhava-nos sempre. Recebi sempre muito amor da minha avó. Muito mesmo. 
O meu avô era....complicado. Era um homem que lia muito banda-desenhado, que me cozinhava uma coisa chamada "Pastelão", que eu adorava e que só comia com ele. Quando estava em casa, sentava-se à lareira e via filmes atrás de filmes. Adorava os westerns. Ainda tentara ver um ou outro clássico com ele mas nunca gostei, até porque sabia que os índios eram os bons e que os americanos eram os maus. 
Nunca me contava histórias até porque raramente estava em casa. Tinha uma amante, a Duponcelle e é estranho como a nossa cabeça não apaga determinados nomes. Essa senhora vivia em frente à minha casa e o meu avô passava lá horas e dias da sua vida e juntamente com o marido dela. Cresci a ouvir o meu pai sussurrar à minha mãe "o teu pai já ali está".
A minha mãe passava por vezes por eles os dois e não dizia nada. Olhava para o chão, mas se ele estivesse na casa dele, com a minha avó, falava-lhe bem. Acho que nunca lhe pediu satisfações, nunca se virou para o pai a dizer "Mas que merda chega a ser essa?". Nunca disse à minha avó, creio, "anda para casa que o pai não vale nada!" 
Aos fins de semana, ele regressava à casa apenas para dormir e fazer uma ou outra refeição. Se vinha em dia não, embirrava com todos, menos comigo. Ficava sempre feliz ao vê-lo. Adorava-o, apesar de tudo o que ouvia acerca dele. A minha avó contava-me "Ele está com aquela puta", assim, com todas as letras. "Ele gasta o dinheiro todo com a puta". Era verdade, porque o meu pai muitas vezes enchia a despensa da minha avó. "Ele só gosta da puta". Era mentira. Gostava de mim também, mas não a contrariava. 

Eu sempre me habituei a ver o Renault 12 azul do meu avô estacionado ao lado da minha casa e vê-lo no jardim da outra. Aprendi também a não cumprimentá-lo quando ele lá estava. Que estranho que é agora revisitar esse tempo. Se me lembrar, um dia, hei de falar disso tudo com a minha mãe. 

Entretanto, numa viravolta que não sei explicar, os meus avós rumaram definitivamente a Portugal e a vida da minha avó apaziguou-se, talvez. 

Em novembro, fomos ao norte e fui ver os meus avós. Não estava com eles há dois anos. Que vergonha. 
Os meus filhos não queriam ir, que era uma seca, que da última vez que lá estiveram não gostaram de muita coisa and so on. Percebi-os porque tinha sentido o mesmo. Mas fomos na mesma.
Quando a minha avó me abriu a porta (e não sabia que ia lá), disse-me "Tella, caralho, estás bonita!, que a minha avó é genuinamente do Norte, não haja dúvidas! Foi um abraço tão bom, tão quente. O meu avó, já muito debilitado, não me reconheceu e nem quando lhe disse quem era. Aí as lágrimas caíram bastante. Ao fim de algum tempo, lá se fez luz e pediu desculpas. 
Depois, sentamo-nos à mesa. Foram buscar fotografias minhas, nossas. Falámos de muita coisa e até dos pastelões de bacalhau que ele me fazia em miúda! Um dia desses, volto a fazer essa iguaria, a ver se funciona como a madalena do Proust. Estivemos lá muito tempo. Os miúdos gostaram de lá estar também e de ouvir algumas histórias. Despedimo-nos e a minha avó disse-me que já não me ia ver mais, que era uma despedida definitiva.
Saí de coração quente. 

Comentários

Mary QA disse…
Sem palavras para comentar este post, tão bonito, profundo, tão teu.
Obrigada pela partilha.
Tella, és mesmo bonita, c******!