A minha Aida

A minha avó Aida foi para o lar da nossa aldeia. Estava em lista de espera há uns tempos e foi chamada no início de Abril. 
Poderia entrar depois do fim do estado de emergência e depois de fazer um teste ao Covid. Entrou há uma semana.

Desde que soube que ela iria em breve sair da casa dos meus pais, quis que ela se deitasse e não acordasse mais. Numa atitude pueril, acreditei piamente que isso fosse acontecer mas claro, não aconteceu. Então quis crer que ela estava à espera que fossemos lá para lhe dar um abraço. Uma despedida, vá.  E ela acordou no dia seguinte, claro. Pensei então que só estava à espera que o seu filho mais velho - o meu pai - fizesse 70 anos. Obviamente que nada disso sucedeu: a vida não segue nenhum dos meus desígnios.
Não a quero ver no lar, na antecâmara da morte. Teria sido uma velhice sempre junto dos dela e seria bonito. Detesto imaginá-la lá. Detesto. 
Vou vê-la apenas durante 10 minutos através da porta de vidro, entreaberta o suficiente para algum som passar. Esse covid mantém os velhos em cativeiro, isolados do mundo. Que horror. Nunca me tinha apercebido disso. 
Há monossílabos por vezes. Noutras há frases soltas "filha, estou mais para morrer do que para viver agora" e eu, pela primeira vez, não lhe disse "Ó Aida, tu chegas aos 100" como sempre sempre foi hábito entre nós. Custa não poder tocar nela. Abençoado abraço este que lhe dei antes de vir para cá.  Ainda bem que não liguei ao distanciamento.  Estaria super arrependida se não o tivesse feito. 
Numa das despedidas, no lar, fiz força para abrir mais a porta enquanto sentia a funcionária, coitada, a fazer força para a manter mais fechada.  Queria que ela ouvisse bem e percebesse bem a minha mensagem "Aida, gosto muito de ti". Ela riu-se incomodada porque não está habituada a ouvir afetos e nunca sabe o que fazer com isso. É de um outro tempo. Por ventura não entenderá que só tem de guardar isso tudo dentro dela e saborear o que lhe dou, tal como guardo dentro de mim tudo o que ela me deu e continua a dar. 
Viro-lhe costas sempre em lágrimas e sussurro uma ladainha "podes ir avó, podes ir em paz. Já nos deste muito". 

Comentários

Carolina disse…
Sem palavras. Só aquele nó na garganta.
Anónimo disse…
O melhor expressão de afeto que tive a sorte de poder conhecer, as Avós.
Mary QA disse…
Uma vida longa e saúde até ao fim, ainda mais com o amor da família por perto, haverá lá coisa melhor?
Beijo enorme.