Aida em tempos de Festa

Quando alguém próximo da família ficava doente ao ponto de ser internada, a Aida dizia sempre "só espero que não morra para não nos estragar a Festa."

Há uns anos, antes do covid, foi internada. Disse-me "só espero morrer depois da Festa".

A Festa da aldeia, em honra da Santa cá do sítio, é um acontecimento. Para ela, era mais importante que o Natal. 

Em miúda, era quando o meu avô matava o borrego para a chanfana. Era quando via o meu pai muito feliz por regressar a Portugal para a Festa. Era quando o meu avô dava a cada neto 100 escudos (aquela nota do Pessoa) para comprar rifas depois da procissão. Era quando se comia pão de ló com queijo em família às tantas da madrugada, depois de ouvir o concerto de Marco Paulo ou Clemente. Era quando a minha avó fazia broa no forno e fazia uma pequena para comermos ainda quente com manteiga. Era quando a Aida, cansada por ter a casa cheia, ficava feliz. "Só espero que ninguém morra para não nos estragar a festa".

No verão de 1998, o meu avô morreu. Ninguém quis vir a festa porque parecia mal, estávamos de luto. Eu nunca liguei a nada disso e pedi as chaves da casa à minha avó que estava em Lisboa, para ir à festa. Ele tinha morrido, mas eu não queria que ele me estragasse a festa. Contra quase tudo e todos, vim. Todos, não. A minha Aida deu-me as chave da casa sem hesitar. Era a Festa.  Lembro-me como se fosse hoje. "Alguém tem de ir. O avô faz muita falta, mas vai, filha, vai." Fiquei sozinha (e assustada) aqueles dias na grande casa vazia. 

Em 1999, fiz parte da comissão de Festa. A família não foi. A Aida não foi à festa, mas ficou em casa a orientar as coisas para mim e para o meu irmão. Éramos os únicos dois com ela. Chorava porque ninguém ia. Parecia ser o fim. Pior que a morte.  O meu pai chegaria depois, no domingo à noite. A Aida pediu-me para entregar 10 contos à Santa, para ela desfilar com dinheiro no andor. Crendices, eu sei. Mas cumpri o que ela me pediu. 

Nos anos seguintes, voltou à festa. A família também. 

Em 2008, já sou mãe. Na sexta da Festa, não quero ir bailar e ver os amigos. Tenho um bebé de 10 meses e quero ficar com ele. O pai cá de casa tenta convencer-me, a tia e os primos, também. Não. Nada é mais importante que o meu filho. Nem a festa. A minha avó, qual matriarca da família, sem conhecer sequer a palavra e o seu significado,  sacrifica-se. "Eu fico com o Tiago. Vais tu e vens para lhe dar mama à hora combinada." Fui contrariada. Mas era a festa. Voltei às 23h30 para dar mama ao meu filho e espero nunca me esquecer desse momento em que a vejo à janela com o Tiago ao colo,  a choramingar e entro no quarto e a oiço a cantar "lá lal lá lá não tenho leitinho para ti lá lá lá nao temho mamas para ti...". Saciei a fome do meu filho e ela disse-me que nunca mais ficava com ele e que iria à festa no dia seguinte e nos também iríamos. E fomos. Assunto arrumado. 

Houve um ano em que deixei de ir para a casa da avó, no Fundo do Lugar. Fui para a casa dos avós do pai cá de casa, mas havia sempre almoço de sábado em família. Sentia saudades da confusão da casa, com muita gente e só uma casa de banho e  das conversas cruzadas. Encontravamo-nos todos no recinto da festa.

Em 2017, depois dos terríveis incêndios, o pai cá de casa e eu decidimos organizar qualquer coisa parecida com a festa. O elemento da comissão de festas tinha morrido no incêndio e não iria haver festa no Concelho completamente enlutado. Fizemos algo espetacular com a ajuda de toda a comunidade. Foi uma das maiores loucuras que fizemos. A Aida veio dizer-me que tinha sido a festa mais bonita dos últimos tempos. Sei que fiz a festa para não deixar que a morte lhe estragasse aqueles dias. Fiz a festa por ela. Por causa dela. 

Voltei a fazer a festa em 2018 e ela orgulhava-se do nosso feito. Ela também tinha sido mordoma nos anos 40. Queria que ela se divertisse. 

Este ano, a Aida não está cá. A morte venceu-a. Eu já chamei às mulheres mais velhas que me rodeiam "ó 'vó". Às vezes, nem me aparecebo. Nunca entro na capela para rezar, não sou crente, mas fui no sábado à noite e ver a santa ali exposta foi o gatilho para a explosão de lágrimas. A morte venceu a minha avó, mas não o legado que ela me deixou e que já estou a deixar aos meus filhos: trabalhamos um ano inteiro para chegar aos dias da festa e provar que estamos cá. Já não há tradições, é certo. Grande parte da família não veio este fim de semana, numa espécie de burrice coletiva por causa de partilhas, foda-se, mas eu só não estarei cá quando a morte me vencer e morrerei depois da festa, como ela, para não a estragar aos meus. Como ela. 

Nunca senti tanto a ausência dela como nestes dias. Só agora a choro como merece. 


Comentários

Mary QA disse…
Que post maravilhoso.
Filomena disse…
Na aldeia dos meus pais a festa acabou-se quando morreu o meu tio, mais tarde o meu avô e a minha infância se foi.
Hoje tenho saudades daqueles tempos da festa, só damos valor quando as coisas acabam e, infelizmente, na maioria das vezes não sabemos que é a ultima vez que o fazemos.
gostei muito das tuas palavras.