Manuel Monteiro (1931-2025)

Regresso ao trabalho e à rotina depois de ter enterrado o meu último avô.  
Já falei dele aqui. Era um homem com muita luz e muita escuridão.  Somos todos assim, mas a frase faz mais sentido nele.

Nascido numa aldeia paupérrima do concelho de Vila Real, junto ao Douro, filho e neto de sarreiros (pessoas que trabalhavam à jorna retirando o sarro das pipas de vinho) -  sendo essa a alcunha da família - o meu avô parecia estar condenado a ser mais um miserável e a aceitar a vida que todos os seus antepassados tinham tido.
Ainda criança, os pais mudam de região e vão trabalhar para Riba D'Ave (Braga). 
Aluno exemplar na escola, passa o exame da 4a classe com distinção. O professor dele tenta convencer o pai a deixá-lo estudar ou a ir para o seminário.  Declina. Precisam de dinheiro e tem de trabalhar. O professor arranja-lhe um emprego diferente no Porto: trabalhar numa livraria. Com 10 anos torna-se homem: vive e trabalha numa livraria. Dizia-me ele que nunca tinha visto tantos livros à sua volta.  O irmão também deixa a aldeia e vai para o Porto. Juntos,  convivem, sobretudo graças à livraria, a outro género de pessoas. O meu avô conhece atores e participa nalgumas peças. Temos apenas uma foto dele dessa altura: uma atuação na peça "Frei Luís de Sousa". Aproxima-se do partido comunista. 
Ele e o irmão também se tornam futebolistas. Jogam no Aves. Há algumas fotos. É um bon vivant. 
Regressa a Riba d'Ave, engravida a minha avó e tem de casar com ela, filha de um GNR...Não tinha como fugir às suas responsabilidades.  Terá sido esse o ponto que o tornou numa pessoa mais frustrada? Com mais sombras? Casou com a minha avó, uma mulher que nem sabia ler ou escrever… Entretanto, ele ensina-a a escrever o seu nome e a ler debilmente. Para sustentar a família dele, vai trabalhar para uma fábrica, ele que não gosta de trabalhar, de ser operário, de baixar a bola e olhar para o chão…  
Em 1966, decide fugir para França com o irmão, que estava a ser procurado pela pide por causa da sua ligação ao pcp. Vai e deixa a família cá. Dão o salto para Espanha sem passador. Contou-me a história, dos cães a ladrar, do medo e do frio, mas eu não entendia muito bem. Vivia em França, não percebia o que significava dar o salto, passador, clandestino, pide ou estado novo.  Viveu num bairro de lata em França. Conseguiu mandar vir a família para junto dele com passaporte e visto. (Felizmente o reagrupamento familiar não era um assunto na época em França…). As fotos que têm, a partir desse momento, são de uma família que não se parece portuguesa, tendo em conta o contexto social e cultural deles. O meu avô permitiu que a família não fosse à missa. Era acima de tudo anticlerical. Espuemava raiva ao falar de padres e beatas! Permitiu as minissaias, os yéyés. Voltou a abraçar vidas duplas. Teve várias amantes, sempre francesas. Houve muita promiscuidade, "putas e vinho verde" e deixou a minha avó, só e humilhada, em casa a lavar a roupa suja... 
Quando o murro de Berlim caiu, ou talvez antes, deixou o partido comunista e passou a ser do PS, tornando-se militante quando regressou definitivamente a Portugal. Tinha um ódio, que partilho com ele, ao Cavaco. Aquando do buzinão da ponte, estando de férias com eles, lembro-me que batia palmas às notícias. Tinha a certeza que se ia demitir em Setembro. Comprava os jornais todos para que nenhum pormenor sobre o tema lhe falhasse. Tinha um temperamento explosivo. Era mau. Na família, diz-se "É Sarreiro" para justificar o mau feitio. Discutia com todos, sobretudo quando atacavam o Mário Soares e o Sporting, com palavreado típico dele "foda-se e o caralho". Dizem que eram os dois amores deles, as suas únicas preocupações. Acrescento outras: eu e o meu mano. O eu irmão, ontem, dizia-me "Fomos muito mimados pelo avô. Ele só foi bom para nós". 
Era um homem de sombras, mas de luz: os livros que tinha e que eu lia, as BD que ele adorava e com as quais aprendeu a falar francês corretamente, os filmes dos anos 60/70 que víamos, eu sentada no sofá e ele, atrás de mim, junto ao forno a lenha, as revistas tipo Bravo que me comprava, a bisca, a sueca e o jogo das orelhas jogado a três, uma língua só dele que ele inventava para me fazer rir ou irritar, etc, 
Bebia vinho numa malga. Picava primeiro o alho no prato que regava com azeite e só depois punha uma posta de bacalhau por cima, o prato favorito dele.
Tal como escrevi num outro post, fui treinada a olhar para ele de forma dupla: o avô explosivo, de quem todos tinham medo, menos eu, e o homem libertino que envergonhava toda a comunidade portuguesa e, consequentemente, eu também.
  
No fim da sua vida, tornou-se ainda pior com a minha avó. Foi internado num lar por começar a ser violento com ela. Acabou a ler sempre os mesmos livros: a biografia de Salazar e de JFK.
Ontem foi um dia triste. Enterrei o último dos meus avôs, aquele que sabia que não amava ninguém sem ser ele próprio, o meu mano e eu. 

O meu filho Pedro carrega muito dele: a mesma fisionomia, a mesmíssima escoliose, a mesma postura, a mesma pose, os mesmos dedos, o mesmo queixo, a mesma apetência para a bola, a mesma necessidade de ter namoradas, a mesma ideologia política, o mesmo feitio explosivo. A minha mãe já me disse "o Pedro é sarreiro" e eu própria já lhe disse isso. 
Ser sarreiro é para mim motivo de orgulho.

(Este post é escrito num só take. Vou publicá-lo sem reler.)

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